A teoria de que as Forças Armadas recebem da Constituição a função de poder moderador nunca resistiu à melhor análise. Trata-se de construção que não encontra base no Direito Constitucional pátrio.
Desconsidera elementos básicos ligados não apenas à ideia de poder moderador, como também ao papel da chefia de Estado e das organizações militares.
Em tempos de acirradas polêmicas, dizer o óbvio, por vezes, se faz necessário: a missão institucional das Forças Armadas não acomoda o exercício de poder moderador entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário.
Não há nenhuma passagem da Constituição que permita o emprego das Forças Armadas para indevidas intromissões no funcionamento dos outros Poderes
Esta foi a exata conclusão extraída pelo STF1, por unanimidade, no julgamento da ADI 6.4572, que não merece reparos.
É evidente que não compete às Forças Armadas o papel de poder moderador.
À uma, porque são poder armado. Quando empregado fora de suas estritas missões institucionais, a porta para arbitrariedade permanece aberta.
Nas democracias as soluções para impasses institucionais têm que necessariamente brotar da política, do debate e dos diálogos institucionais entre todos os poderes envolvidos.
Vale dizer, soluções racionais renunciam às armas.
À duas, porque o exercício do poder moderador pressupõe a existência de uma autoridade suprapartidária e supraideológica, apta a se colocar em posição de neutralidade frente aos atores envolvidos nos conflitos, sem recorrer ao plano hierárquico.
A partir do instante em que a Constituição reconhece que as Forças Armadas estão organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República (art. 142 CF), some, por completo, qualquer plausibilidade de exercício de função moderadora.
A questão é até mesmo elementar. Havendo hierarquia, como um subordinado pode moderar seu chefe?
Entre nós, a figura do poder moderador existiu somente sob a vigência da Constituição Imperial de 1824, que, neste ano, completou 200 anos.
Estava previsto ao longo de quatro artigos (98 a 101): "O poder moderador é a chave de toda a organização política e é delegado privativamente ao Imperador, como chefe supremo da nação e seu primeiro representante, para que incessantemente vele sobre a manutenção da independência, equilíbrio e harmonia dos mais poderes políticos."
A sua chave era a busca do equilíbrio e harmonia entre os poderes, em um cenário de independência.
Naquela época, na arquitetura da forma de governo monárquica e de um sistema de governo parlamentarista, a figura do poder moderador estava amarrada à Constituição, com as devidas cautelas.
Dentre elas, o fato de estar esvaziado de funções governamentais propriamente ditas e de estar identificado, no maior grau possível, com a figura do Imperador, chefe de Estado3.
Embora a República fosse a solução natural com o passar dos tempos, a técnica das constituições brasileiras posteriores, ignorando e expulsando o poder moderador da Constituição, não foi a melhor para garantir o Estado de direito e a democracia.
O argumento é de que nos momentos dramáticos das crises que iniciaram com a República Velha, o poder estatal acabou sendo tomado em diferentes ocasiões pelas Forças Armadas, ao sabor de atos revolucionários e das paixões da hora, sem qualquer limitação constitucional4.
Sempre que as Forças Armadas exerceram a golpe de força o poder político, o resultado não se mostrou satisfatório e as cicatrizes daí remanescentes permaneceram abertas.
Isto só prova que a vocação institucional das Forças Armadas é totalmente estranha à figura do poder moderador.
Benjamin Constant, célebre autor da teoria do poder moderador, já pregava: o vício de quase todas as constituições tem sido o de não ter um poder neutro e de ter colocado a autoridade suprema em um dos poderes ativos5.
O pensamento de Constant repousa na ideia de que quando uma autoridade suprema é combinada com um dos poderes públicos, há uma tendência à arbitrariedade e à tirania, com os excessos daí decorrentes.
É exatamente o que tende a ocorrer quando se entrega a um poder armado qualquer ligação com os poderes estatais.
Se poderia perguntar por que muitas pessoas acabam embarcando na tese de que caberia às Forças Armadas uma moderação dos poderes, sobretudo quando o sistema de freios e contrapesos, típico da tripartição, não se mostra eficaz?
Várias razões podem aqui ser elencadas, quase todas eles conectadas à falta de noção sobre o que representa a teoria do poder moderador. Uma delas, contudo, se destaca.
Nem sempre fica claro para os brasileiros a distinção entre Estado e governo, já que entre nós ambas as funções têm a chefia exercida pelo Presidente da República.
O Brasil vem optando, há muito, pelo sistema presidencialista, cuja principal característica é a cumulação, em uma única autoridade, das funções de chefia de Estado e de governo. Já nesse aspecto se revela um equívoco fundamental: como uma única autoridade poderá, simultaneamente, exercer a contento funções tão distintas?
O perfil de chefia de Estado exige, necessariamente, postura suprapartidária e supraideológica, pois o Estado é algo que nos une, acima de diferenças de ordem política ou ideológica. Quando se atua contra o Estado, opera-se uma disrupção no desejável consenso em relação aos objetivos permanentes da República, com o efeito de desagregar a sociedade, impedindo, assim, o normal curso da democracia.
Na função de chefia de Estado destaca-se um elemento de preservação da unidade estatal.
Se é certo que na democracia uma única pessoa não é capaz de garantir essa unidade, uma mediação levada a cabo por uma autoridade que não se identifica fortemente com um partido ou ideologia, na condição de força neutra, pode, em situações de crise, converter-se em um elemento de agregação nacional,6 possibilidade que, por força dos arranjos institucionais existentes, não possuímos.
Os objetivos de governo, ao contrário dos de Estado, costumam dividir a sociedade, razão pela qual ir contra o governo significa oposição, que quando exercida nos limites da lealdade à Constituição mostra-se saudável e necessária ao bom andamento da democracia.7
Esta é a razão pela qual a função de chefia de Estado deveria ser separada, a partir da Constituição Federal, das demais forças politicamente atuantes, como a de chefia de governo. Na prática, estamos falando de uma configuração institucional que retira, no sentido de preservar, o Chefe de Estado do processo de condução geral e de configuração política de uma nação.8
A infelicidade é que no sistema de governo vigente, quando se escolhe um Chefe de Estado, ele está automaticamente vinculado a um partido político, representante de uma ideologia, que irá atrair oposição, já que simultaneamente chefia um governo, de aceitação parcial.
Neste cenário, dificulta-se o desempenho da neutralidade ínsita à representação de Estado, que deve traduzir unidade.
O papel da chefia de Estado adquire relevo a partir do momento em que contribui, com seu distanciamento ideológico e partidário, para a base de um consenso, sem o qual, dentro de uma multiplicidade de opiniões e interesses, a unidade não pode ser alcançada, nem a paz social preservada. Trata-se do posicionamento da própria Constituição no ambiente político.9
O pensamento clássico advertia: daí a falta que faz a figura do poder moderador para agir em tempos de crise, como verdadeira instância magistral, fator de equilíbrio do sistema político, apta a arbitrar conflitos, retificar direções, neutralizar abusos e solucionar impasses complexos entre os poderes10.
No atual sistema constitucional brasileiro esta figura não existe. Não está inserida nos poderes constituídos, nem no Judiciário, muito menos nas Forças Armadas.
Para nós, a busca do equilíbrio e harmonia entre os poderes deve ser obtida à luz de diálogos institucionais, com as dificuldades de não haver uma moderação capaz de guiar a atuação de todos os envolvidos pela racionalidade.
No instante em que optamos por unir as chefias de Estado e de governo em uma mesma autoridade, temos que estar dispostos a pagar o - caro - preço pelas disfuncionalidades daí decorrentes.
Apostar no aprimoramento das instituições republicanas é a melhor saída para a crise. É trocar a ameaça de caos pela confiança e estabilidade.
E não tentar empurrar às Forças Armadas algo que não lhe cabe.
De volta ao início: dizer o óbvio, por vezes, se faz necessário.
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1 Disponível aqui.
2 Disponível aqui.
3 SOUZA JUNIOR, Cezar Saldanha. A Crise da Democracia no Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 1978, p. 65.
4 SOUZA JUNIOR, Cezar Saldanha. A Crise da Democracia no Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 1978, p. 67s.
5 CONSTANT, Benjamin. Curso de Política Constitucional. Tomo I. Madrid: Imprenta de la Compañía, 1820, p. 34s.
6 HESSE, Konrad. Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland. Neudruck der 20. Auflage. Heidelberg: Müller, 1999, Rdn. 535.
7 SOUZA JUNIOR, Cezar Saldanha. A Crise da Democracia no Brasil: aspectos políticos. Rio de Janeiro: Forense, 1978, p. 83ss.
8 SCHEUNER, Ulrich. Bereich der Regierung. In: LISTL, Joseph; RÜFNER, Wolfgang (Hrsg.). Staatstheorie und Staatsrecht: Gesammelte Schriften von Ulrich Scheuner. Berlin: Duncker & Humblot, 1978, p. 481.
9 GRIMM, Dieter. Die Verfassung und die Politik: Einsprüche in Störfällen. München: Beck, 2001, p. 41s.
10 PIMENTA BUENO, José Antônio. Direito Público Brasileiro e Análise da Constituição do Império. Rio de Janeiro: Typ. Imp. e Const. de J. Villeneuve & C, 1857, p. 204s.
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